domingo, maio 17, 2015

Osso dos meus ossos, carne da minha carne


Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne

Ele sem ela não é ninguém
 (Música Ele e Ela, letra de Carlos Canelhas)



“…Ela apareceu e a beleza dela desde logo o prendeu…”

O teu corpo é feito de mim. Por isso cada centímetro da tua pele tem o meu código intrínseco. E as tuas mãos conhecem-me devagar.
Nada nos distingue e, ainda assim, há uma música branca e estranha, que se desprende do teu corpo. Que me faz desejar-te.
De cada vez que piso a terra molhada deste pomar, sei sempre que estou em casa. Porque onde tu estás, será sempre o fim do meu mundo.
Por vezes, foges para lá dos meus dedos e do meu entendimento. Nesses momentos receio pela nossa imortalidade.

“…Sei quem ele é, ele é bom rapaz, um pouco tímido até…”

O meu corpo é feito em ti e por isso os meus dedos rasgam-te a pele sem mapas. Quase que somos iguais. Na carne e no sonho. Quase que nos basta existir assim. Tu primeiro, eu depois.
Permanece em mim o insondável mistério. Não entendo porque não me basta nosso beijo para apaziguar a minha sede. Para mitigar o desejo. Do mais além que não conheço. Ter-te tatuado na minha pele será sempre pouco. 

“Só fala nela cada momento, vive com ela no pensamento”



Acho que poderíamos ter sido eternos se o mundo não estivesse à nossa espera.


“Ele sem ela não é ninguém”

Somos feitos de uma imperfeição predestinada. E ainda assim somos pais de tanta gente.




* Nota. Todas as passagens em itálico são transcrições da canção “Ele e Ela” com letra da autoria de Carlos Canelhas.

* Publicado na revista NConstrast em 2008

terça-feira, maio 05, 2015

Tanto fumo, tão pouco fogo.


As frases disparadas em catadupa, certeiras, prontas a abater o alvo. Ele não se mexe, nem sequer responde. Ela é uma miúda, agitando o telemóvel numa das mãos e os ditongos perceptíveis saem-lhe cada vez mais alto. Ele, homem maduro, permanece impassível a fumar, recostado na cadeira da esplanada.  O cinzeiro vai-se enchendo de beatas em acto contínuo. 
A idade também é isto; saber em que guerras movimentar as peças e consumir forças.
Tantas palavras, tanto fumo para tão pouco fogo. 
Não merece a pena.



sábado, maio 02, 2015

E é só isto.

O taxista perguntara-lhe:
«Tem a certeza?»
«Tenho, tenho.»
«É mesmo aqui que quer ficar?»
«Sim, sim. Vou tirar umas fotografias e depois uns amigos vem cá ter.»


Muitos morreram tarde demais, e alguns demasiado cedo. A doutrina que diz: “Morre a tempo!”- Nietzche 

domingo, abril 26, 2015

Da magia que alegadamente existe.



Insistes que sorrir é o suficiente. Que se estalar os dedos os desejos se concretizam. Que os momentos, são pequenos ou grandes dependendo da importância que lhes atribuirmos. Garantes-me que haverá sempre magia no mundo. 

«Se te permitires acreditar, claro»

Eu finjo que não. Só para que continues a convencer-me. 

terça-feira, dezembro 16, 2014

É só isto, desculpa.

Não há nenhum vazio por mais que se procure o coma. Penso, estúpida e reiteradamente no que vai acontecer. No que pode acontecer. Penso que estou a perder tempo a pensar no que não vai quase de certeza acontecer. E pensa-se. E é um aborrecimento. É só isto, desculpa.


quinta-feira, dezembro 11, 2014

Até

Não nos sabemos despedir. Tentámos vezes sem conta; e foram tantas e tão definitivas que na vez antes da próxima prometi que seria a última que o faria.
Esgotada pelo cansaço da sobrevivência ao silêncio, espero adormecer e  quero que saias dos meus sonhos.

quarta-feira, novembro 26, 2014

«Viver não é difícil, difícil é saber viver.»

«Viver não é difícil, difícil é saber viver.»

Ela não sabia nenhuma destas coisas, concluiu. Tinha sempre dúvidas. Nas aulas, antes dos testes, levantava vezes sem conta o dedo com tortuosas questões e hipotéticos cenários. «E se…?» Depois da terceira pergunta já feita com algum estrondo, os professores respondiam com evasivas ou então fingiam não ouvir as suas interrogações impertinentes.

De manhã, em frente ao espelho, questiona-se se aplica rimmel e eyeliner ou só baton ou tudo junto. Ou nada disto. Um vestido pelo joelho ou calças pretas, sapatos de salto alto, ou botas de cano alto.

Ele irá telefonar esta noite?

Não sabe interromper, para dizer que é a sua vez na fila. Que quer atenção. O volume da sua voz vai deflectindo até se transformar num lamento irreflectido e incómodo. Pede que gostem dela. 
Por favor. Obrigada, agradece sempre no final.

Ele irá telefonar esta noite?

Se o amor puder ser uma comodidade atingível, por favor, não o lho digam. A condição de o abismo ser o limite transponível é a mecânica do seu boneco.

Ele irá telefonar esta noite?


Definitivamente, não tem vocação para saber viver. 
Com a palma das mãos tapa os ouvidos até que a voz dos outros deixe de ser ruído e consiga encontrar apenas a sua. E se remende sozinha. 

sexta-feira, setembro 05, 2014

Não o fazemos todos?

Não há tempos definidos nos hotéis. Nada é definitivo. Nunca se fica o suficiente para que nasça a raiz. E são impessoais; os lençóis brancos, os sabonetes, os plásticos que envolvem os copos, a ranhura da porta.
 Ele limita-se a pedir um quarto de casal. Somente para uma noite e para uma pessoa. Ele. Não tem bagagem para além do trolley no qual guarda os documentos profissionais. Agradece e encaminha-se para o elevador.  
Ainda não acende a luz. O que sobra da luminosidade do dia permite-lhe distinguir-lhe a silhueta dos móveis e a sua disposição de forma a não tropeçar se decidir avançar. 
Depois de se despir, acende um cigarro e sente a firmeza do colchão contra as suas nádegas. Não pode fumar no quarto. Já não há quartos para fumadores. Deveria abrir a janela. Mas também duvida que dispare o alarme por causa de um cigarro. E se assim for… pior. O cartão do maço acabado serve-lhe de cinzeiro e por momentos fica indeciso quanto ao que fazer a seguir. Interromper a cadência das acções e a sequência rítmica dos verbos no pensamento é mau. É sempre mau. 
Porque há a dor é suja e velha que habita a pele do corpo que se reduziu aos olhos dos outros e se a deixar tolhe-lhe os movimentos todos.
Precisa de um banho quente e de esquecer. A água escalda-lhe as costas, porém não se importa com a temperatura. É passageira a sensação. A sensação de imundice vai voltar. Assim como a dor inquietante que o fustiga e desanima. E o faz procurar um novo hotel. E não voltar à casa, à cidade onde uma vez pertenceu. Dir-se-ia que foge, numa estúpida tentativa de se encontrar.

Não o fazemos todos?

sábado, agosto 30, 2014

Eu matei um homem

Eu matei um homem.

Não me perguntem o que aconteceu, não sei explicar. A arma descontrolou-se. Ou eu fui que não consegui contê-la entre as minhas mãos. Antes disso o primeiro tiro com a pequena metralhadora correra bem. Depois o homem caído no chão. O sangue misturado com a areia. Os gritos da minha mãe. O meu pai ainda com o telemóvel na mão a filmar, porque atrás da objetiva pode ser que tudo ainda seja ficção como no cinema. Alguém me pega ao colo. Os meus calções cor-de-rosa estão também manchados com sangue do homem que eu atingi com o meu tiro. Acertou-lhe na cabeça. Ninguém sabe se vai se resistir ao ferimento. 

Decido que já não quero usar mais tranças no cabelo. Quero cortá-lo curto. Não quero voltar a ser menina, nem a brincar com bonecas novamente. Também não tenho vontade de chorar. Estou num hospital, numa sala colorida entre desenhos rabiscados nas paredes e cubos no chão, há uma senhora que fala devagar comigo para que eu que também fale com ela sobre o que aconteceu. E eu não sei falar. 

Ainda que houvesse uma pequena esperança que o homem pudesse sobreviver, eu soube desde do início que o tinha matado. Por isso, não sei se há muito a dizer, senhora que falas devagar com uma voz mansinha que me enerva. Também decidi que já não quero um irmão. Ou uma irmã. Sou má. Ia acabar por lhe fazer qualquer coisa também. Não me importo se voltar a cair e a esfolar os joelhos, ou a partir de novo o queixo. Juro que não me vou queixar se doer. Vou abrir os olhos com muita força para não chorar. Como agora. 

Eu tenho nove anos. E matei um homem. 



quinta-feira, agosto 21, 2014

Anestesia

«O copo partiu-se e a água entornou-se.»
 «Não faz mal. Limpa-se e amanhã compra-se outro no chinês.»
(O som agudo do vidro a estalar e a quebrar, tão igual ao que corre cá dentro nos dias que passam.)
«A roupa ficou demasiado tempo na máquina, cheira a mofo. »
«Lavarei novamente. »
(Pudesse eu tão facilmente arrancar o que em mim se oxidou.)
«Mesmo assim eu fico cá esta noite contigo.»
«Obrigada.»




(No princípio foi o beijo, no fim também. )